20/08/2022 às 22:23 Entrevistas

Entrevista com Júlio Ettore - Rock Nacional 1980

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18min de leitura

Júlio Ettore é dono de um dos canais mais relevantes sobre rock produzido no Brasil e faz sucesso falando sobre bandas como Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii e Barão Vermelho.

Conversei com o Júlio sobre esses e outros grupos e falamos sobre o rock como manifestação cultural, os motivos do sucesso nos anos 1980 e como o gênero se conecta (ou não) com a geração mais jovem. Boa leitura! Obs: Vídeo da entrevista no final.

Como o rock entrou na sua vida e como surgiu a ideia de criar o canal?

Com 13 anos, gostava de pagode! Era final dos anos 1990 e começo dos anos 2000. Não tinha nenhuma referência musical em casa. A memória mais antiga que lembro era ouvir o “Nevermind”, do Nirvana. Tenho dois irmãos mais velhos e colocava para tocar “In Bloom”. Eu ficava imitando as viradas do Dave Grohl no sofá! Aquilo ficou guardado.

Eu gostava do que era moda, não tinha uma percepção apurada para a música. Não quero ser depreciativo em relação ao pagode, mas era o que estava na moda. Aí tiveram dois fatos importantes. Meu irmão queria conquistar uma menina e ela adorava Legião Urbana. Eu tinha 13 anos nessa época e ele 17 anos. Para impressioná-la, ele queria decorar “Faroeste Caboclo” e “Pais e Filhos”. Ele foi numa loja de discos e comprou o “As Quatro Estações” e o “Músicas Para Acampamento”.

Nessa época, escutei muito esses discos e lembro de ficar impressionado! Tentei decorar “Faroeste Caboclo” também. Mas não me tornei um grande fã naquela época, sabe? O mosquitinho foi mordendo! Quando a Legião lançou o acústico em 2000, todos meus amigos começaram a escutar todas aquelas músicas que eu já conhecia. Aí foi quando virei pro rock de vez.

Outra coisa foi que lá fora, nessa época, surgiu o “Americana”, do Offspring, o “Californication”, do Red Hot Chili Peppers. Tudo ao mesmo tempo. Essas influências se somaram e virei roqueiro. Quis aprender violão e guitarra. Fui até metaleiro, gosto de Metallica até hoje.

Como a Legião foi por onde aprendi a tocar guitarra, com os dedilhados do Dado Villa-Lobos, acho que sempre tive uma relação mais afetiva com a banda. A partir daí, criei essa mesma relação com as outras bandas brasileiras do rock anos 1980.

O canal surgiu quando comecei a pegar minha guitarra, ligar no computador e fazer regravações das músicas da Legião Urbana. Um belo dia, resolvi jogar essas músicas no YouTube. Isso foi em 2010! O canal já tem 12 anos!

Eu não tinha nem câmera! Alguns vídeos estão lá até hoje. Passaram-se anos e as pessoas começaram a descobrir, achar legal e pedir para eu fazer mais. Quando foi em 2014, comprei um baixo e voltei a fazer as regravações. Aí, começaram a pedir para eu ensinar a tocar as músicas!

Eu ainda não tinha câmera, era só o áudio! Como não existia Spotify e as pessoas ainda ouviam música pelo YouTube, fazia sentido gravar esses vídeos. Em 2020, comprei uma câmera finalmente!

A minha ideia foi a seguinte: ao invés de só ensinar a tocar, contar a história da música antes. Comecei a pesquisar. O canal ficou assim por um tempo até que comecei a analisar o gráfico de retenção de público. Através dele, via onde as pessoas assistiam mais.

Percebi que 90% das pessoas ficavam só nos 5 primeiros minutos, que era quando eu contava a história da música. Depois, começavam a sair. Quem queria aprender a tocar era entre 10% e 20% só. Quando entendi isso, comecei a fazer vídeos só contando histórias. O algoritmo identificou que isso era relevante e começou a indicar para as pessoas.

O YouTube também mostra quais vídeos do canal as pessoas efetivamente assistem e descobri que os vídeos polêmicos eram os favoritos. Então, tentei encontrar uma forma de fazer um vídeo sobre polêmicas, porém, com conteúdos embasados. Aí começou a voar! Me deparei com o desafio de o que fazer além da Legião Urbana. Sempre gostei mais e estudei a Legião, mas passei a fazer enquetes para ver que outras bandas as pessoas gostavam.

No começo, o canal só falava da Legião Urbana, certo?

Isso! Era só Legião! Só regravava Legião e ensinava sobre a banda. Descobri que a banda número dois das pessoas que gostavam de Legião era Engenheiros do Hawaii. Esse processo está em andamento e vai seguir indefinidamente.

Você fez realmente uma análise do que o público quer, né? Quais outras bandas devem vir na sequência?

Algumas já estão programadas. Minha abordagem sempre foi profissional, no sentido de estudar e tomar decisões baseadas nos estudos. Nada é por acaso. Não sou um youtuber instintivo. Todas as decisões são embasadas. Hoje, tenho Legião e Engenheiros bem solidificados. Vou medindo o interesse do público. Achava que Paralamas do Sucesso ia ter um resultado, mas é interessante, porque fui descobrindo o perfil do fã.

De maneira geral, o fã da Legião Urbana tem uma relação bastante afetiva com a banda. E uma parte se relaciona com o Renato Russo. Em geral, sempre dá bom resultado. É uma banda com uma história muito rica. No caso do Engenheiros, o fã também é muito passional. Já os Paralamas, é engraçado, porque por mais que eles estejam na ativa até hoje, o fã não é tão passional assim. Os vídeos acabam não tendo muita atenção.

Então, vou dosando. Comecei a falar sobre Barão Vermelho e Cazuza, que estão com ótimos resultados, e Raul Seixas. No caso do Raul, achava que não ia dar resultado, porque meu foco é anos 1980. Ele é anterior, mas fui ver o Google Trends e eu estava completamente errado! O Raul tem muito mais busca do que Renato Russo e Cazuza! Comecei essa experiência de lançar um vídeo por semana falando sobre o Raul.

Fiz uma enquete há uns meses para os membros escolherem bandas para a votação. Escolheram Titãs, RPM, Plebe Rude, Capital Inicial e Nenhum de Nós. Entre esses, Titãs ficou em primeiro e Nenhum de Nós em segundo. Vou estudando e trazendo para o canal com base na votação. Tem muita coisa para explorar nos Titãs e vou fazendo novas enquetes.

O grande desafio é sair dos anos 1980 e explorar os anos 1970. Os anos 1990 é um pouco complicado por conta do gap geracional. As mensagens e a estética do rock são muito diferentes. Já fiz alguns testes ensinando músicas do Charlie Brown Jr., por exemplo, e quem gosta dos anos 1980 não é muito receptivo com os anos 1990. Em algum momento, vou misturar, pois quero abrir cada vez mais.

O que teve de tão especial na década de 1980 que catapultou o rock do Brasil para o sucesso?

Primeiro, teve o abrandamento do Regime Militar. As coisas foram afrouxadas com a anistia. Não que não houvesse rock antes, mas aquela juventude vem com uma mensagem diferente, mais rebelde. Ainda havia censura, o Renato Russo teve letras censuradas, mas com a transição, a juventude se viu motivada a fazer isso.

Cada um dos quatro principais lugares – Rio, São Paulo, Brasília e Porto Alegre – teve razões específicas para o rock se fortalecer lá. Em Brasília, tinha uma juventude com acesso a informações e boa condição financeira. O rock é uma música cara. O pai do Herbert Vianna era piloto da Presidência e conseguiu trazer uma Gibson. No caso da Legião, todos eram filhos de servidores públicos. Isso dá estabilidade financeira e você consegue criar um clima para o rock acontecer.

O Renato Russo falava inglês, porque morou nos EUA. O Fê Lemos morou na Inglaterra. Foi um ambiente de circulação de informações em que as coisas faziam sucesso lá fora, os discos chegavam aqui e rolavam as influências. Eles tinham condições de comprar os instrumentos. Sem falar na transformação cultura. Os jovens se sentiam mais livres para falar essas coisas, que é o que o filme “Bete Balanço” mostrou. O Brasil teve surto de crescimento e o rock nasce nessas famílias com condições.

O vídeo mais assistido no seu canal é sobre a morte do Renato Russo. Por que você acha que esse é o de maior sucesso? As pessoas gostam de se conectar com assuntos mórbidos e de certa forma polêmicos?

Esse quadro “Conexão Legiônica” é onde procuro aliar temas que gerem interesse com uma abordagem com conteúdo. Não exploro imagens. Procuro contar a história como aconteceu. É claro que esse tema gera interesse. Preciso me pautar pelo o que as pessoas querem saber. Acho que foi uma abordagem respeitosa e honesta, com os fatos.

Tudo que falei está em biografias. Defini esse tema imaginando que teria muita aceitação. O Dado fala sobre os últimos momentos do Renato Russo. O que procurei foi desconstruir alguns mitos. Ele não morreu de AIDS, e sim de depressão? Acho que isso não está claro ainda. Procurei dar as versões. O médico afirma que foi AIDS. A mãe diz que a carga viral estava baixa, então teria sido a depressão. Apenas um exame cadavérico para saber, mas não vejo importância. Acho que ele iria morrer de qualquer forma.

Tentei reconstruir com o máximo de fidelidade o que aconteceu nos últimos dias. A mãe ligou para ver o Renato, mas ele não queria que ela o visse. Acho que isso gerou curiosidade, mas as pessoas têm curiosidade mórbida de achar que aconteceram certas cenas. Tento desconstruir isso. Não foi nada escabroso. Foi basicamente ele definhando, pedindo para não ser visto. Teve a despedida do Dado. Ele não está aqui agora para se colocar.

O vídeo cresceu também porque começou a ser recomendado por um vídeo que não tinha muito a ver. Era um vídeo sobre o Ney Matogrosso em algum lugar. Ele estacionou em 60 mil views. Aí, do nada, veio esse vídeo do Ney em outro canal. Do nada, passou a ser recomendado e cresceu.

Uma vez o Dinho Ouro Preto disse que preferia o Renato Russo do que o Cazuza e a mãe do Cazuza ficou chateada com ele. Qual sua análise sobre a comparação entre Cazuza e Renato Russo?

Quando estudo as bandas, acabo mergulhando nos artistas. Até pouco tempo, não conhecia Engenheiros do Hawaii, por exemplo. Hoje, prefiro o Renato Russo, mas se eu me aprofundar no Cazuza, talvez mude essa impressão.

Agora, me identifico mais com o Renato porque nossas histórias são parecidas. Eles dois são meninos brancos de classe média, mas o Cazuza era da Zona Sul do Rio de Janeiro e eu ou mais urbano, de São Paulo. Então, a temática da Legião era menos praiana, a do Cazuza tinha a praia e a vida boêmia, que não falou muito minha língua.

Entre os dois, acho que o Cazuza trilhou um caminho musical mais amplo. Tanto que ele sai do Barão Vermelho querendo brincar com a MPB e outros estilos. O Renato era mais um roqueiro. O Cazuza era mais um cantor do que necessariamente um roqueiro. O Renato se espelhava em certos artistas do rock. Ele era um cantor de rock, o Cazuza era mais amplo. O rock foi importante, mas ele transitou por outros estilos.

Mas isso não faz um melhor do que o outro. Os dois tiveram problemas de comportamento. Pelos relatos que leio, o Cazuza era mais instável e imprevisível que o Renato. Os dois não tinham papas na língua, mas o Renato era mais recluso e se preocupava com a imagem. Ele não queria fazer show e aparecer. O Cazuza fazia questão de ser visto e estar no meio. Era mais exibicionista. Isso gerou problemas de relacionamento com os mais próximos do Cazuza.

Muitos comentam que o Cazuza era mimado. Essa discussão é vista com um pouco de preconceito, falam que ele era um playboy, como se isso diminuísse ou invalidasse as coisas que ele fez. O Renato passou por problemas que o deixaram mais amargo que o Cazuza. O Cazuza tinha um ambiente mais seguro, que o dava tranquilidade de não pensar na forma como lidava com outras pessoas.

Falando um pouco sobre o Raul Seixas. Minha impressão é que ele passou a ser mais reconhecido e venerado depois que morreu. Como você avalia isso?

Fiz faculdade de Geografia! Então toda rodinha de violão tinha Raul Seixas! As pessoas querem falar em nome do Raul. O que ele era? Satanista? Comunista? Tem muito isso. Os fãs se agrupam e cada um diz o que o Raul queria dizer. Como as mensagens permitem interpretações variadas e nas entrevistas dele ele não dava respostas, isso permitia que os fãs especulassem as interpretações.

O que será que ele quis dizer com determinada música? Que magia é essa que ele fala nas letras? Será que é o diabo? Pela pesquisa que fiz, não tem nada disso. Tinha interesse espiritual dele, mas tinha o marketing. Muitas pessoas não entendem isso ou acham que tinha alguma coisa do diabo por trás. Isso rende muita discussão e hoje em dia com a internet essas visões sobre o Raul se chocam.

Com o Cazuza, não acontece muito isso. Já com o Renato, as letras ainda geram alguns debates, por causa da questão da homossexualidade. Geram-se debates. No caso do Raul, são muitas coisas envolvidas: Alester Crowley, ditadura, Schopenhauer, Filosofia. Isso se choca e na internet esse debate encontrou ambiente fértil para seguir infinitamente.

Tenho duas perguntas sobre os Titãs. No começo, eram 8 integrantes e muitos saíram, mas a banda continua. Como você vê o fato de a banda continuar, mesmo com essas baixas? E como você avalia essa mudança de sonoridade do grupo, que antes era mais “sujo” e “punk” e agora suavizou o discurso e as guitarras?

Essa questão de que muitos integrantes saíram acho que foi porque as personalidades deles mudaram com o tempo. Quando você tem 19 ou 20 anos, não mede as consequências. Eles eram oito e não previram ou sabiam por quanto tempo iriam permanecer com a banda. Agora, são gênios! Faço muitos vídeos sobre fim de bandas e vejo que elas funcionam como sociedade. Não são amigos necessariamente. É uma empresa e eventualmente os desgastes acontecem.

Com certos grupos, isso é mais contornável, em outros não. Imagina se você pega um trio como os Paralamas. Se em algum momento o Herbert quisesse fazer um disco mais para o samba, a conversa dele com o Bi e o Barone é uma. Imagina se são oito! Aí o Nando Reis fala que quer ir para um caminho e tem que convencer outros sete! É mais fácil a pessoa sair do que ser ouvida. Acompanhei parte dessa história, porque me lembro. São projetos. Com um grupo menor, é mais fácil um denominador comum.

Agora, em relação às mudanças, os Titãs sempre foram de mutação. Você passeia por ska, vem o “Cabeça Dinossauro”, punk tipo Raimundos... O som foi mudando. É difícil para nós entender como o processo de escrever as letras e definir a sonoridade muda com a idade. Se você tem 20 anos, sua intenção estética é uma. Com 50, seu pique é outro. A velocidade da composição é outra. Os Titãs hoje não farão algo parecido com o passado. A mesma coisa os Paralamas. Você envelhece e passa a ter outras compreensões sobre a vida. Acho perfeitamente natural essas mudanças.

O RPM sempre aparece nas listas dos mais vendidos do Brasil de todos os tempos. Qual sua relação com a banda? Tem algum disco favorito?

Em breve, o RPM estará no meu canal! Acho que eles são um fenômeno muito interessante. Acho incrível uma coisa que durou tão pouco tempo ter criado uma memória afetiva tão grande. Acho que é um som com muitos méritos. A proposta de um baixo marcando a cabeça da nota e a guitarra fazendo as frases.

Agora, o que provoca esse fenômeno? Teve até um Globo Repórter sobre eles e é inacreditável! O Pedro Bial pergunta o que as pessoas acham sobre o RPM e todos dizem que se identificam com as letras. Eles reproduziram uma ligação afetiva forte. Não sei explicar! Todos querem saber. São poucas músicas, não deixaram uma obra grande.

O rock teve muita exposição na mídia naquele momento. Era a bola da vez. Estava na revista e na TV. Entrou na cabeça das pessoas e não tinha Spotify para descobrir outras coisas. Ou seja, poucos artistas entraram na cabeça das pessoas. Tem a figura do líder, que é o Paulo Ricardo. Tem a questão de ele ter sido um símbolo sexual e isso mitificou a banda. Foi um momento em que toda indústria jogava a favor do rock.

Claro que bandas como o Charlie Brown ainda têm muitos fãs, mas o nível de afetividade que as pessoas criaram em relação ao RPM e aos anos 1980 não vai ser o mesmo que as pessoas terão daqui a 10 anos sobre o Charlie Brown. Porque o Charlie Brown já não jogava sozinho no campeonato. Tinham outros ritmos juntos.

O rock sempre criticou o governo. É só ver bandas como Legião Urbana e RPM. Agora, hoje em dia muitos dizem que o rock não deve se misturar com política. O que você acha disso?

Nos anos 1980, para falar sobre política bastava ser contra o governo. Antes do Sarney assumir, havia uma compreensão difusa sobre o que era governo. Ainda estava na mão dos militares. Depois, as coisas estavam ruins e a inflação estava alta. Fazia muito sentido ser contra o governo e falar sobre política.

Talvez, nos anos 1990, isso ainda era relevante, até que o plano real começasse a fazer efeitos e o Brasil iniciou a construção das bases para um crescimento mais sólido. Depois, a política começou a ter outro caráter. Antes, era ligada à economia. Você vê o “Cinco” da Legião Urbana, ou algumas dos Paralamas. São críticas. Não que as coisas hoje estejam fáceis, mas antes tinha fiscal para conferir o aumento de preço nas padarias, sabe?

A politização do rock, naquele momento, estava ligada à economia e à dificuldade de viver no país. Fazia sentido. Hoje, para uma banda falar de política, vai ter que escolher um lado. Aí vai desagradar outro. É mais uma questão de ter um time do que falar sobre política. É um ambiente bem diferente.

Não que as coisas ficaram perfeitas, mas enquanto os problemas econômicos não fossem amenizados, o rock tinha toda liberdade e terreno fértil, com liberdade de expressão. Tinha inflação alta e analfabetismo, mas diminuiu.

Nas listas de “melhores álbuns do Brasil de todos os tempos”, sempre figuram clássicos como “Clube da Esquina” e “Construção”. Nunca há discos de rock. Existe uma implicância ou preconceito com o estilo no Brasil por parte dos formadores de opinião? Como o rock se encaixa com os outros ritmos brasileiros, como a MPB e o Samba?

Se voltarmos para os anos 1970, tinha o pessoal da música mais careta, que seria o rock da Jovem Guarda. Eles eram taxados de americanos e imperialistas. Aí, tinha a MPB e o Tropicalismo como música brasileira nativa e genuína. Quando chega o rock nos anos 1980, bebendo do rock inglês e do pós-punk, ele é atacado pelos dois lados.

O Lobão fala isso. A direita via o roqueiro como maconheiro e vagabundo. A esquerda via o roqueiro como americanizado. Sempre foi um estranho no ninho na música brasileira e não conquistou o respeito. Como a MPB prevaleceu, talvez tenha esse pé atrás. O rock é visto como um corpo estranho, que veio de fora.

Os próprios artistas do rock poderiam ter feito mais esforço para ter mesclado mais e conversado com a MPB no sentido musical. Não houve uma aproximação para que o rock pudesse ser visto como uma manifestação genuína brasileira, que produziu coisas boas. Parece que o rock perdeu a batalha e não conseguiu ser aceito no clubinho.

Quais discos de rock você incluiria nessas listas de “melhores” da música brasileira?

Não sou crítico musical, sabe? Meu foco não é conhecer discos e saber quais são os bons ou ruins. Pesquiso as histórias. Muitos querem que eu dê minha opinião. Mas se fosse para escolher alguns discos, colocaria o “Krig-Há, Bandolo”. É um puta disco do Raul Seixas. Nos anos 1980, fico entre Engenheiros do Hawaii e Legião Urbana. Escolheria “A Revolta dos Dândis” e “As Quatro Estações”.

E falando um pouco sobre heavy metal... Qual sua relação com o gênero? Quais suas bandas favoritas? Alguma do Brasil?

De uma certa forma, me considero metaleiro! Comprei uma guitarra Gibson Explorer por causa do James Hetfield! Sempre curti muito Metallica, Iron Maiden, Pantera. No Brasil, adoro Sepultura. Gosto do Chaos A.D e Roots. No caso do Angra, acompanhei muito e gosto até o “Rebirth”. Toda a época do Andre Matos também. Eu com 15 anos tirava todos os solos do Kirk Hammett!

Eu lia sobre o Metallica nessa época! Queria saber como estavam, se iam gravar discos... Adorava! Até hoje gosto. Em termos de sonoridade, o metal me influenciou para caramba! A banda que realmente mais curti foi o Metallica. Acho que eles tinham uma coisa que não enxergava em outras bandas. Eles não eram farofa, sabe? Tipo aquelas bandas que aderem aos códigos de conduta do metal. Eu os via como uma banda mais genuína. Não tinha aquela pegada de falar sobre Idade Média, assuntos heroicos, cavalos. Achava eles mais honestos. O Iron Maiden também tem muitos pontos positivos.

Como você analisa a imprensa de rock no Brasil? Hoje temos youtubers e influencers. Antes era só a MTV. Será que é papel dos jornalistas lutar pela popularização do estilo? Podemos pensar em uma volta do gênero ao mainstream?

Acho que ajuda sim! Todos são críticos hoje. Antes, a opinião pública ficava refém de um seleto grupo de pessoas que dizia o que era bom ou não. Hoje todos dão opiniões e produzem conteúdo. Isso ajuda a aumentar a quantidade de informação circulando e deixar o ambiente mais honesto.

As pessoas podem ter acesso a um conhecimento que elas não teriam. Nos anos 1980, tudo jogava a favor do rock. Outros estilos não tiveram a mesma sorte. Talvez coisas que aconteceram nos anos 1980 não são lembrados por causa do rock. Como hoje o mercado está a favor de outras coisas, por outros motivos, se dependêssemos das mesmas revistas e programas... O que estaria no Top 10 da MTV? Certamente não teria rock! O mercado joga para outro lado.

Agora, essa democratização é verdade para o rock e todos os estilos. É uma questão de quem faz o melhor conteúdo, não necessariamente o melhor estilo. O rock não é melhor do que nada. Mas se o YouTube permite que mais pessoas falem sobre rock, também permite que fale mais sobre outros estilos.

Cabe aos comunicadores produzirem os melhores conteúdos para que as pessoas conheçam as coisas boas que foram produzidas, para inspirar novas gerações a continuar fazendo. É isso que procuro fazer. Muitos que frequentam meu canal estão na casa dos 50 e enxergam no meu conteúdo a possibilidade de reviver memórias do passado.

Agora, tem uma turma mais nova, que está conhecendo. Quem era Renato Russo, Cazuza, Raul Seixas? É uma oportunidade! Inspirar as pessoas. Acho difícil falar sobre o “rock voltar a ser como antes”. Ele perdeu seu status de motor de comunicação da juventude. Hoje, a juventude se expressa por outros estilos. O trabalho precisa ser fazer com que a juventude possa se expressar pelo rock de forma que faça sentido para eles. Bandas de rock existem, mas elas não têm um discurso que é aceito pela juventude. Não conseguem ser o porta-voz deles.

Já ouvi pessoas falando que o rock virou careta e por isso os jovens não se conectam mais. Virou o estilo que os pais ouvem...

Isso é uma causa. Temos um gap de gerações. O rock é coisa de velho! De pais e mães. Tenho 35 anos e lembro que quando eu estava na escola uma amiga me disse: “Duvido que você vá gostar de rock quando for velho”. Nós estamos ouvindo rock e a molecada que nasce não ouve.

Outra coisa que explica é que não temos uma juventude hoje que quer se rebelar contra os pais. Isso é o que acontecia até os anos 1990. Com essa mudança de geração, os pais hoje são muito mais próximos dos filhos culturalmente. Não enxergam mais como inimigo o pai e a mãe. Ou alguém para se rebelar.

O rock tinha esse papel. Usavam certas roupas, falavam certas coisas. Tocava guitarra alta para chamar atenção e enfrentar os pais. Hoje, enfrentar os pais não é algo que a juventude entende como mais importante. Os pais são mais super protetores. O rock precisa encontrar uma forma de ser a força de expressão dos jovens. Mas com certeza: virou música de velho!

Outra análise que já ouvi é que o rock exige muito tempo e esforço para quem quer aprender a tocar guitarra, por exemplo. A geração atual está muito dispersa e não consegue se concentrar nesse sentido.

Tem uns caras com canais no YouTube de 15 anos que tocam guitarra de maneira inacreditável! São caras técnicos demais, mas não estão criando algo estético do ponto de vista lírico. Eles reproduzem coisas que fizeram sucesso lá atrás. A juventude consegue aprender os instrumentos, mas acho que tem isso de eles não encontrarem na guitarra um caminho para se expressar.

Hoje é muito fácil fazer um sampler com o celular e produzir um trap ou outro estilo. Tem um menino que ganha dinheiro no Tik Tok fazendo isso. É mais fácil do que aprender a tocar os instrumentos. Para ter uma bateria, exige um esforço. Produz um incômodo. Os jovens enxergam nessas músicas eletrônicas uma forma mais prática, que faz mais sentido no contexto deles, que é usar celular na sala de aula.

O rock é caro, né? É uma música elitista. O guitarrista precisa ter a guitarra, pedal, cabos, amplificadores. O vocalista precisa de coisas, o baterista, nem se fala. É muito caro fazer rock. É uma atividade compartilhada. Fazer aqueles mashups no celular você faz sozinho. As características da geração atual explicam, mas se eles enxergarem que podem se expressar com o rock, conseguem aprender”.


20 Ago 2022

Entrevista com Júlio Ettore - Rock Nacional 1980

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